Translation

sexta-feira, 11 de agosto de 2017

Uma história de vida: do trabalho escravo ao doutorado

Adicionar legenda





Amaro Hélio Leite da Silva é professor do Instituto Federal de Alagoas, mestre em sociologia pela UFAL, doutor em história pela UFPE, coordenador do Grupo de Estudos, Memória, Tecnologia e Etno-história de Alagoas (GEMTEH) e membro do coletivo Índios de Alagoas: cotidiano e etno-história.









Esta é uma bela história de vida de um homem que vem da periferia, transforma-se em um Professor Doutor e não perde suas raízes. É o caminho que percorreu o Professor Doutor Amaro Hélio da Silva. Além disso, o texto nos fala sobre o delineamento de todo um contexto social e político, desde a saída do meio rural ao encontro da periferia em Maceió.       
Sem dúvida Campus/O Dia agradece a oportunidade de poder publicar este texto  e convidar seus leitores para conhecer um pouco da vida de Amaro Hélio da Silva.
Um abraço
Sávio de Almeida


UMA VIDA DE LUTAS E UTOPIAS – parte 1
Amaro Hélio Leite da Silva


Fazenda Conceição: a infância no interior


Nasci numa noite de 25 de março de 1973, no povoado Bananal, Fazenda Conceição, Viçosa (Alagoas). Minha mãe conta que antes da parteira chegar para fazer o parto, eu já estava nos braços da minha tia-madrinha Dodô, a quem devo os cuidados e o afeto dos meus primeiros momentos de vida, além de muitos outros. Foi um dia inusitado: meu pai havia saído às pressas, para buscar a parteira quando se deparou com assombração numa encruzilhada próxima à minha casa, o que contribuiu para retardar o socorro, na medida em que ele ficou pálido, arrepiado e imóvel por algum tempo.
Sou filho de José Manoel da Silva e Francisca Leite da Silva. Meus pais eram pequenos agricultores e viviam como arrendatários; eles alugavam algumas tarefas de terra do proprietário da fazenda, onde podiam construir sua moradia, produzir e até comerciar, mas, ao final de cada ano, era preciso pagar pelo seu uso. Não lembro quantas pessoas moravam na fazenda, mas metade fazia parte da minha família e todos viviam nessa condição.
A fazenda não era muito grande, mas possibilitava uma economia de subsistência para cada família e o suficiente para pagar o arrendamento da terra. É difícil lembrar exatamente como era o lugar, mas a conversa com os meus pais me ajudou a relembrar os lugares e os fatos que marcaram minha vida. Lembro, por exemplo, da escola de Mobral que minha mãe dava aula; do rio onde tomávamos banho; do campo de futebol; da bodega do seu Jason; e, principalmente, da minha casa, onde vivi os primeiros anos da minha vida.
Morávamos numa casa muito simples, comum à maioria dos pequenos agricultores da região. Era uma casa de taipa, feita de varas trançadas e barro, com uma sala, um quarto e uma cozinha. O banheiro ficava no quintal, onde, também, havia algumas roças de feijão, inhame e macaxeira para a nossa subsistência. Os móveis eram poucos e, essencialmente, utilitários: o fogão era de barro e lenha; a mesa era um metro quadrado de madeira, com quatro lugares, reservada para hora das refeições, onde sentavam meus pais e os meus dois irmãos mais velhos; os outros, sentavam no chão; na verdade, minha mãe diz que, até os quatro anos de idade, vivíamos arrastando a bunda pelo chão, ora brincando com os bichos ora “comendo barro”.
Tínhamos um ferro de passar roupa, à brasa, que só era usado em ocasiões muito especiais, quando, por exemplo, íamos à feira de Paulo Jacinto ou de Viçosa – nosso maior momento de lazer. Lá, ficávamos encantados com os cantadores de viola, as bandas de pífano e as histórias de cordel. Tínhamos um banco de pelar porco, que ficava no quintal; duas camas de casal com colchão de capim, costurado com pano de chita. Numa cama, dormiam os meus pais e, na outra, dormiam eu e os meus três irmãos. Tínhamos um pote de barro e uma quartinha (espécie de miniatura de pote), que serviam para conservar a nossa água sempre fresca e pronta para beber. Tínhamos um pilão para socar o café e milho. Lembro ainda que havia uma imagem do Sagrado Coração de Jesus, uma da Santa Maria e outra do Padre Cícero – formando a Santíssima Trindade do nordestino – o que era comum em quase todas as casas do lugar. E, finalmente, tínhamos uma cacimba, que era nosso reservatório de água.
A fazenda Conceição era um lugar marcado pelas mazelas da pobreza: desemprego, fome, doenças e mortalidade infantil – era uma reprodução microcossocial do que era Alagoas na época. Para os meus pais, a vida sempre foi difícil. A vida de agregado da fazenda era uma relação de dependência com o proprietário, sem perspectiva alguma de sair do ciclo de pobreza da região. Foi, justamente, para tentar escapar dessa realidade que eles viveram, cerca de dois anos, peregrinando no Sul e Sudeste do país (em busca de trabalho), até serem levados para uma fazenda de algodão no interior do Paraná – num lugar ermo, de mata fechada – onde passaram a viver, quase um ano, em regime de semiescravidão.
Vidas em fuga, em busca da liberdade (dignidade)
A jornada começa com a fuga de casa. Meus avôs, pais da minha mãe, não aprovavam o namoro dela com o meu pai, principalmente meu vô, que já havia arrumado um pretendente para ela. O jeito encontrado pelos dois foi fugir de casa e casar na Viçosa. Sem muitas perspectivas na fazenda Conceição e fugidos, eles resolveram tentar a vida em São Paulo, onde já viviam duas irmãs da minha mãe. Chegando lá, procuraram muito, mas não encontram minhas tias. Foram, então, para a Migração, instituição responsável pelo acolhimento de migrantes, garantindo-lhes alimentação e alojamento, até que estes pudessem encontrar um destino ou trabalho. Foi aí que meus pais resolveram ir à Linha Noroeste (na cidade de Guaimbê-SP) procurar o primo do meu pai. Meu pai arrumou emprego numa ponte sobre o rio Tibiriçá. Foi aí que ele começou a receber um salário suficiente para comprar a feira do mês. Entretanto, depois de alguns meses de trabalho, o Exército apareceu para alistar os trabalhadores. Sem querer servir nas forças armadas e ter que mandar minha mãe de volta à Alagoas, meu pai resolveu pedir as contas e pegar a estrada novamente.
Entre as cidades de Santos (trabalhando numa oficina) e Raposo Tavares (trabalhando numa plantação de banana), foram meses tentando alguma estabilidade no emprego, mas nada dava certo, até chegar à Linha Sorocabana, onde arrumaram emprego na colheita de amendoim. Ao terminar a colheita, surgiu um boato de que havia uma boa oportunidade numa fazenda de algodão, no Paraná. 
Depois de alguns dias de trabalho nessa fazenda, não demorou muito e logo descobriram que se tratava de trabalho escravo, situado numa área de mata fechada. Cada família passou a viver numa casinha de madeira pequena. Acordavam de madrugada, no frio, para colher algodão. A alimentação era a base do que a mata oferecia, principalmente, milho e abóbora. Minha mãe diz ter perdido as contas de quantas vezes foi preciso fazer pipoca pra não passar fome. Não existia barracão para venda de alimentos. Até as ferramentas de trabalho eram vendidas “fiado” e nunca receberam um centavo como salário. Minha mãe chorava todos os dias, arrependida de ter fugido com o meu pai. Havia descoberto o óbvio: o trabalho era à sua escravidão.
Quando qualquer trabalhador reclamava dessa condição, eles eram ameaçados de morte pelos capangas. Parecia não haver saída. A fuga era quase impossível numa mata inóspita e desconhecida. Depois de alguns meses de sofrimento e ameaças constantes, meu pai conseguiu articular um plano de fuga, ao sensibilizar um caminhoneiro da fazenda. Tratava-se de sair escondido de carona no caminhão – ele e minha mãe – na calada escuridão da madrugada. O plano foi um sucesso.
Conquistada a liberdade, o objetivo era refazer o sonho na Linha Sorocabana. O problema era que eles não tinham como pagar o transporte. Sem dinheiro, o jeito foi apelar para o acaso, sorte ou desespero. Meu pai diz que chegou a pegar uns três ônibus sem nenhum centavo. Quando o motorista cobrava a passagem, ele hesitava com medo, mas a determinação para voltar pra casa maior. Dizia que não tinha passagem e nem dinheiro para pagar transporte algum. Ele falava da experiência na fazenda de algodão. E mesmo com receio do que poderia acontecer, afirmava que estava disposto a tudo para chegar ao seu destino e que não desceria do ônibus de jeito nenhum. Numa mistura de desespero, coragem e medo os meus pais conseguiram voltar à Linha Sorocabana para trabalhar na colheita de amendoim, até conseguir dinheiro para voltar à Alagoas.

De volta à fazenda Conceição



Depois dessa experiência frustrada, restava o caminho de volta à fazenda Conceição. É verdade que a sua terra natal não oferecia muito futuro, mas era o lugar da família e, pelo menos, não corriam o risco de viver no cativeiro ou de passar fome. Minha mãe diz que ainda teve a sorte de não engravidar no Paraná, pois logo após a sua volta à fazenda Conceição, nasceram os meus dois primeiros irmãos.
Sou o terceiro, depois do meu irmão Zé Nilton (José Leite da Silva); o mais velho, pois existe outro José Leite da Silva, que chamamos de Ailton (o terceiro mais novo) e da minha irmã Zenilda (Maria Leite da Silva). São três irmãos que são conhecidos por nomes completamente diferentes do que foram registrados no cartório. Minha mãe conta que o povo do interior, onde ela morava, tinha o costume de colocar o nome de José em todos aqueles que nasciam laçados pelo umbigo – por isso os dois nomes iguais – e como no interior tinha muito José e muita Maria, ela resolveu criar os nomes diferentes do registrado, apenas para diferenciar.
A morte prematura dos meus dois primeiros irmãos (Maria José e Antonio Carlos) era a evidência de que a vida no interior de Alagoas não era nada fácil. Era uma menina de cinco meses e um menino de dois anos de idade. Minha mãe não sabe bem por que eles morreram, mas, hoje, já sabemos que nas condições em que se vivia na zona rural a morte estava sempre à espreita. Apesar de não passarmos fome, nossa alimentação era pouca e dependíamos sempre da plantação feita no quintal de casa. Não havia saneamento básico ou rede de esgoto. Não havia posto de saúde ou médico. Tudo isso favorecia a desnutrição e a mortalidade infantil da maioria das crianças que nascia no lugar. 
O único tratamento para as mazelas da pobreza era a reza e as plantas medicinais; rezava-se por intermédio de uma rezadeira ou do Padre Cícero, do Juazeiro do Norte. A rezadeira era uma espécie de médica e profeta ao mesmo tempo. Ela orava e medicava com ervas, de acordo com a doença. Minha mãe lembra da rezadeira D. Tereza Ângelo dos Santos, que curava mau olhado, engasgo e outras doenças do corpo e do espírito. Para tirar o mau olhado, por exemplo, era preciso de uma planta chamada vassourinha; em seguida, começava o ritual de cura dizendo: “em nome do Pai, Filho e Espírito Santo, com dois te botaram, com três eu tiro, com o poder de Deus e da Virgem Maria”; depois, dava uma sacudida na planta e quando ela murchava, era sinal de que havia muito mau olhado. Fazia-se esta reza três vezes.
O meu pai fala do meu bisavô, Juvêncio Barbosa Bispo, que era um rezador famoso da região, curava doença de gente e de bicho. Ele era procurado por todo tipo de gente para curar mordida de cobra, mau olhado ou qualquer outro tipo de doença. Por conta dessas curas, meu bisavô ganhava muitos presentes: galinha, bode e até boi. Um exemplo dado por meu pai foi quando meu bisavô ganhou um boi de um fazendeiro, depois de ter curado um bicho da Fazenda dele. A cura não poderia ser paga, mas se fosse retribuída em forma de presente não tinha problema.
Depois de ter lido o livro A História Escrita no Chão, do professor Sávio de Almeida, é que pude conhecer melhor o poder da ciência do povo e, consequentemente, a complexidade do saber-fazer da medicina popular. Antes, minha ideia de saber popular era a de “folclore”, com todo o estigma que essa palavra carrega, como espécie de saber menor, restrito a “crendice” dos mais velhos e de pouca credibilidade. O livro derrubou alguns preconceitos, muitas vezes, reforçados tanto pela academia quanto pelo senso comum. Nele foi possível encontrar vários tipos de ervas e rituais de cura criados pelo povo do interior, em especial da fazenda Vitória do Periperi (Boca da Mata), onde “doença e flora formam a unidade indivisível entre o mundo real e o fantástico” (ALMEIDA, 1997, p. 165). É interessante ver a variedade de ervas e orações, inclusive um abecedário de ervas e raízes de 1788, criado por Tomaz José de Melo Gonçalves citado pelo autor.
A lista é grande da flora medicinal e de rezas para cura. Tem reza para mau olhado (já citada), para engasgo; tem erva para estancar sangue de um corte (leite de bananeira, jucá no álcool), para inflamação de garganta (aroeira, barbatimão), para dor de barriga (hortelã da folha miúda, capim santo e cidreira), para doença dos rins (a folha do abacate e do croaçá), para acabar com os vermes (batata de purga na banana); garrafada de diversas raízes que serve para dor de coluna, dor nos ossos... (ALMEIDA, 1997, p. 165-182). Embora já existam pesquisas científicas que comprovam a eficácia de algumas plantas medicinais, o povo faz a sua própria ciência do mato, com base no cotidiano da vida e no “fantástico” da fé.
O fato é que não existe prova científica para essas curas, e não precisa, pois a tradição oral e a crença popular se encarregam de passar para as outras gerações o poder das rezas e plantas; e ganha credibilidade, na medida em que aquele que passa já viveu a experiência ou conhece um caso bem sucedido, seja na família ou de um amigo. Este é o caso da minha família, onde meus dois irmãos (Zé Nilton e Ailton) foram curados pelas ervas e promessas feitas por minha mãe ao Padre Cícero do Juazeiro.
Em casos de doenças mais graves, fazia-se promessas aos “santos” nordestinos, a exemplo de Frei Damião, Santa Quitéria e, principalmente, o Padre Cícero, que embora não fosse reconhecido pela hierarquia da Igreja, sempre foi considerado um santo para o povo nordestino, inclusive para os meus pais. A prova disso aconteceu com os meus irmãos Zé Nilton e Ailton, que, segundo a minha mãe, depois de viverem boa parte da infância à beira da morte, as promessas feitas ao Padre Cícero os curou. Não é por acaso que, até hoje, todos os anos, meus pais vão ao Juazeiro.

As brincadeiras de infância


Mas a fazenda não era apenas pobreza e doença, ela era também, para nós crianças, um mundo de brincadeiras e imaginações. Das brincadeiras, lembro dos carrinhos de madeira que o meu primo Carlinhos fazia. Ele era uma espécie de artesão da fazenda. Sua especialidade era caminhão de madeira, que, geralmente, substituía os carros de boi das famílias mais pobres. Embora fosse um transporte de carga para muita gente do lugar; para mim, era uma viagem fantástica, que eu adorava pegar uma carona.
Lembro também das brincadeiras no rio dos Veados, onde minha mãe lavava as roupas e as panelas de casa. Era um rio pequeno e raso, mas muito bom para tomar banho. Não sei o porquê do nome, mas isso pouco importava para os moradores, pois todos dependiam dele. Às vezes, apareciam umas “cobras nadadeiras”, que não eram venenosas, mas botavam a gente pra correr. Nem as schistosomas tiravam a gente do rio. Por causa delas fui internado em Maceió para fazer um tratamento de verme.
  Lembro ainda das brincadeiras no colégio da fazenda. Era um velho colégio, praticamente abandonado, apenas algumas salas de aula funcionavam. Não cheguei a estudar lá, embora minha mãe tivesse sido professora do Mobral, uma espécie de programa de alfabetização de jovens e adultos criado pelo regime militar. Para as crianças, o colégio só existia como espaço lúdico. Criávamos uma casa imaginária, fazendo de conta que as mesas e cadeiras eram os móveis e a sala de aula a casa. Brincávamos também de esconde-esconde à noite.
De todas as brincadeiras, a mais gostosa e perigosa era “roubar” manga e jaca nos sítios vizinhos. É claro que tínhamos medo de levar um tiro de espingarda soca-tempero ou de levar uma surra dos nossos pais, mas a sede de aventura e a fome de manga eram mais fortes do que a gente. Entretanto, esse mundo de fantasia só existia para as crianças. Aos adultos, restava enfrentar as vicissitudes das relações de dependência com o proprietário da fazenda.
 A vida era difícil na fazenda, conforme já afirmamos anteriormente. A terra era pouca; plantava-se apenas o suficiente para sustentar a família e pagar o uso da terra, numa espécie de economia de subsistência. Sem perspectiva, o êxodo rural foi a saída para a maioria dos moradores da fazenda, reproduzindo o destino retirante de Morte e Vida Severina, contada em verso e prosa por João Cabral de Melo Neto ou de Vidas Secas de Graciliano Ramos. Nessa nova retirada do interior, meus pais não queriam repetir o erro da experiência vivenciada nas matas do Mato Grosso. Decidiram tentar a vida na capital, onde já moravam dois irmãos do meu pai, tio Severino e tio Cicinho.

A vinda para a capital


Maceió do final da década de 1970 e início da década de 1980 vivia o fenômeno da expansão urbana, provocada por dois fatores fundamentais: o êxodo rural e a especulação imobiliária. Vários fatores influenciaram o êxodo no campo, mas, sem dúvida, a expansão da agroindústria do açúcar nesse período teve um papel decisivo. Em seu clássico Usinas e Destilarias de Alagoas, Manoel Correia de Andrade mostra que a expansão das usinas para os tabuleiros a partir da década de 1950 e o aumento vertiginoso da produção de açúcar, entre os anos 1970 e 1980, provocou uma série de impactos na vida do homem do campo (1997, p. 98-99). Isto significou, entre outras consequências, a necessidade de mais terras para plantação do canavial e a expulsão dos pequenos agricultores das suas áreas cultivadas; sobretudo, daqueles que moravam como agregados ou arrendatários nas fazendas, a exemplo dos meus pais.
Já especulação imobiliária teve como consequência a invasão do grande capital nas áreas de subsistência e vida dos pescadores – sobretudo para os que viviam do mar – construindo edifícios, hotéis e mansões para a elite e para os turistas apreciarem as nossas belezas naturais. Era o fim das casas de pau a pique dos pescadores e pobres, empurrando-os para as vilas e favelas da orla ou para as zonas periféricas e grotões da cidade, juntando-se aos pobres migrantes que vinham do interior. Era a nossa modernidade tardia, conforme afirma Edson Bezerra, em seu Manifesto Sururu (2006), “erguida sobre os terreiros dos negros e das moradas dos pobres”.
Essa foi a Maceió que a minha família encontrou no final da década de 1970. A cidade mudava e com ela precisávamos aprender a mudar também. Logo perceberíamos que o sonho da vida moderna na capital se transformara no atraso da vida rural no interior, a pobreza.
A mudança ocorre no final da década de 1970. Depois de juntar algum dinheiro com a venda de alguns animais de criação e da colheita de algumas roças, o meu pai conseguiu comprar uma casa de taipa no bairro do Jacintinho, rua Bonfim. Era uma casa muito pequena (cerca de cinquenta a sessenta metros quadrados): uma sala, dois quartos e uma cozinha – embora tivesse um quintal que nos mantinha ligados às lembranças do interior, com um pé de carambola e algumas plantas domésticas.
O Jacintinho era um dos poucos bairros da capital que abrigava os migrantes vindos do interior do Estado. Era um bairro formado por alguns sítios e cercado por muitas grotas e com pouca infraestrutura: faltava saneamento básico na maioria das ruas, água encanada. A prestação de serviço público era precária: só havia uma escola e um posto de saúde. Os ônibus eram velhos e insuficientes para atender a população.
Era preciso aprender a viver na capital, e isto significava decifrar os códigos de convivência do bairro e encontrar alguma forma de renda. Apesar de analfabeto, meu pai sempre foi muito trabalhador. Não demorou muito para encontrar emprego na Sococo, empresa especializada no beneficiamento de coco, que ficava a uns 300m da nossa casa. Como não tinha profissão definida, ele era uma espécie de “serviços gerais” da empresa. Já minha mãe, por ter sido professorinha do interior, resolveu dar aula de alfabetização para alguns parentes e vizinhos mais próximos; porém, recebia mais agrados do que dinheiro.

Nenhum comentário:

Postar um comentário