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quinta-feira, 20 de outubro de 2016

A CULTURA DO ESTUPRO

Esta matéria foi publicada no jornal O Dia/Campus, que circula em Maceió
Karen
Karen Pimentelestudante de Direito da Universidade Federal de Alagoas e membro do Núcleo de Estudos em Direito Internacional e Meio Ambiente.

Rikartiany









Rikartiany Cardoso: alagoana, estudante de Direito da Universidade Federal de Alagoas, membro do Núcleo de Estudos em Direito Internacional e Meio Ambiente e militante do Partido Comunista Brasileiro e do Coletivo Feminista Classista Ana Montenegro.


A perpetuação do estupro e seus números alarmantes em pleno século XXI demonstram que não bastam medidas jurídicas para que este seja abolido, é preciso ir à raiz do problema. A função do Direito no tratamento da problemática foi a de identificar a gravidade da conduta e torná-la um crime, tornando assim passível de sofrer uma pena privativa de liberdade quem o cometer. O crime, então, vem depois que a conduta é considerada relevante socialmente para ser tratada pelo sistema jurídico. É preciso primeiro existir a conduta para que o Direito venha alçá-la à estatura de jurídica. Dessa maneira, o direito não atua na raiz do problema, mas tenta remediá-lo. O Direito Penal faz isso através da sua função preventiva, que busca de alguma maneira coibir que os estupros aconteçam, dando uma resposta punitiva àqueles que o cometem.  Karen Pimentel, Rikartiany Cardoso.

A CULTURA DO ESTUPRO

A cada 11 minutos ocorre um estupro no Brasil. É isso mesmo. Enquanto se espera o ônibus para ir ao trabalho, enquanto se espera para pagar a conta de luz na fila do banco: mais uma pessoa é cruel e sexualmente violentada em nosso país. Dessas, 89% são mulheres e 70% crianças. Em 2014, Alagoas registrou 1.286 casos de estupro: são mais de três estupros registrados por dia no estado. Esses são os dados do 9º Anuário Brasileiro da Segurança Pública, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Este ano o cenário não é menos desanimador: ao menos uma criança foi estuprada por dia, já contam mais de 150 casos de estupro de menores no estado, conforme o Sistema de Polícia (Sispol) e a Delegacia dos Crimes contra a Criança e o Adolescente (DCCCA). Contudo, apenas 19,1 % desses casos são denunciados, segundo dados do IPEA.
Como explicar uma sociedade que estupra mulheres e crianças todos os dias, de maneira tão frequente que se pode chamar endêmica? O que permite que ao menos uma criança por dia seja estuprada em nosso estado, isso sem contar os casos que não chegam às autoridades policiais, aqueles que ficam cobertos sob o manto da discrição familiar ou sob a reputação de alguém que não pode ser manchada por “apenas um impulso incontrolável”?
Para além de uma questão jurídica, o estupro tem raízes sociais. Por isso mesmo, não se pode considerar o estupro puramente na esfera do Direito, mas compreendê-lo em suas outras dimensões, que apontam para o seu enraizamento em uma sociedade marcada pelo patriarcado. A perpetuação do estupro e seus números alarmantes em pleno século XXI demonstram que não bastam medidas jurídicas para que este seja abolido, é preciso ir à raiz do problema. A função do Direito no tratamento da problemática foi a de identificar a gravidade da conduta e torná-la um crime, tornando assim passível de sofrer uma pena privativa de liberdade quem o cometer. O crime, então, vem depois que a conduta é considerada relevante socialmente para ser tratada pelo sistema jurídico. É preciso primeiro existir a conduta para que o Direito venha alçá-la à estatura de jurídica. Dessa maneira, o direito não atua na raiz do problema, mas tenta remediá-lo. O Direito Penal faz isso através da sua função preventiva, que busca de alguma maneira coibir que os estupros aconteçam, dando uma resposta punitiva àqueles que o cometem.
Como os dados demonstram, não apenas do aparato jurídico-penal se faz uma política de real combate ao estupro, que se mostra um problema assustadoramente real no Brasil e, especialmente, em Alagoas. Desde o estupro coletivo de uma adolescente no Rio de Janeiro por 33 homens, tem-se difundido muito nas redes sociais e nos veículos tradicionais de comunicação o termo “cultura do estupro”. A uma primeira vista, este tem causado certo estranhamento, afinal, como um crime tão repugnante poderia constituir uma cultura? É difícil reconhecer que se todos os dias uma criança é estuprada em nosso estado e que se a cada 11 minutos ocorre um estupro no Brasil, é preciso mais que uma horda de estupradores treinados, é preciso de uma cultura que os legitime.
A cultura é um fenômeno humano, de passagem de tradições e comportamentos por meio da linguagem. A cultura é sempre criação humana, não é comportamento natural, é sim a forma como perpetuamos nosso modo de vida. Quando se fala sobre uma cultura do estupro, quer-se dizer que há todo um padrão de comportamentos e discursos que aprendemos e reproduzimos durante a vida que não só legitimam, como explicam por que números tão alarmantes de estupros no Brasil.
A violência de gênero é um reflexo direto da maior derrota histórica do sexo feminino, ao serem retiradas da esfera do trabalho produtivo para serem encarceradas dentro de casa, as mulheres passam a servir como reprodutoras de herdeiros para os homens que detinham os meios de produção. Não todas, grande parcela das mulheres pobres, além desse gravame passaram a servir como prostitutas. Com o advento da propriedade privada é celebrada a inauguração do mundo patriarcal e a redução da humanidade histórica das mulheres a meros objetos, parte delas servindo a produção de herdeiros e outra parte à satisfação da luxúria dos homens, sendo fortalecido ainda mais com o sistema capitalista. Neste sentido o estupro é naturalizado, bem como romantizado, a própria construção de nosso país perpassa estupros a mulheres negras e indígenas.
Nota técnica realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, em 2014, já mostrou que mais de 50% dos estupros de crianças e adolescentes são cometidos por pessoas próximas como pais, padrastos, namorados e amigos. No caso dos estupros de pessoas adultas, o percentual é de 40% dos casos. Cerca de metade dos estupros que acontecem no Brasil são cometidos por alguém conhecido, o que com certeza ajuda o papel do aparato punitivo estatal. Ora, já se conhece o criminoso, ainda que este fuja, encontra-lo torna-se tarefa mais fácil quando sua identidade é conhecida. No entanto, como os números continuam alarmantes e crescendo a cada ano?
Mesmo que haja leis mais duras, mesmo com a maior amplitude do conceito de estupro presente hoje no Código Penal, o que é necessário para que de fato se combata o estupro no Brasil? Talvez a preocupação maior esteja no remédio e não vacina. Quando se fala em estupro, o imaginário popular logo pensa na pena que um estuprador merece, a vingança privada volta a ser a regra nos discursos. O que ocorre é que tanto a vingança privada quanto a punição estatal, ainda que tragam um certo grau de conforto à consciência de parte da sociedade, não resolve o problema. Não resolveu durante todas essas décadas e continuará sem resolução se não houver uma mudança radical na forma de enfrentamento deste problema.
Se a solução proposta não tem o caráter punitivo, por vezes esta acaba recaindo sobre o comportamento da vítima. É o que demonstra pesquisa realizada pelo IPEA em 2013: 58,5% dos entrevistados concordam total ou parcialmente com a afirmação de que "Se as mulheres soubessem como se comportar, haveria menos estupros". A lógica é reversa. Não se culpa o estuprador pelo ato violento, mas sim a vítima, que deveria seguir à risca um certo comportamento considerado adequado para evitar estupros. É uma lógica perversa, mais ainda quando se trata das crianças, 70% do total de vítimas no país. Qual a conduta adequada de alguém considerado vulnerável para que não seja estuprado? Mais uma vez tenta-se dar uma solução que logo demonstra-se inócua, tendo em vista que, independente da conduta da vítima, dos lugares que frequenta, das roupas que usa, o estupro continua acontecendo. Prova clara disso é o fato de que as crianças são a grande maioria das vítimas, dentro das próprias casas, por pessoas que deveriam protegê-las, como pais e padrastos. Caso chocante de estupro de vulnerável foi o ocorrido em Penedo, no dia 26 de julho deste ano, por 5 homens, em que a vítima estava sangrando e gemendo de dor enquanto filmavam o crime.
Percebe-se que lógicas como essas não enfrentam a violência de gênero em sua origem social: o machismo - que perpetua a prática hierarquizada do homem no topo e reproduz relações sociais assimétricas de poder entre homens e mulheres. São necessárias, ao contrário, medidas que desconstruam de uma vez por todas as bases que sustentam essa estrutura que chamamos de sociedade patriarcal. E isso se faz combatendo justamente aqueles padrões de comportamento, crenças, conhecimento e costumes que compõem a cultura do estupro.
É necessário introduzir tais debates nas escolas, nos bairros, nos ambientes e fomentar que trabalhadoras e trabalhadores se organizem e destruam essa forma de sociabilidade, machista e patriarcal, bem como o capitalismo que as fortifica, pois este necessita da opressão de classe e de gênero, além de ser necessário entender que a própria cultura do estupro gera um fenômeno perverso que dificulta avanços: ela impede que as pessoas - os homens, em especial - se coloquem no lugar da vítima, perdendo a oportunidade de refletir sobre as próprias condutas reprodutoras de opressão, além de entender que somado a esta opressão, mulheres da classe trabalhadora, negras e lésbicas são ainda mais oprimidas por essa latente violência.

É preciso ir além das medidas punitivas e reverter em jogo em favor das mulheres e crianças, maiores vítimas do estupro. A cultura do estupro está calcada na ideologia patriarcal, que subjuga as mulheres, tratando-as como meras propriedades do homem, objetos que servem à satisfação do prazer masculino e procriar, para garantir a manutenção da propriedade privada dentro de um mesmo seio familiar. Combater a cultura do estupro é sinônimo de destruir o patriarcado. Acabar com a ideia de desigualdade social entre homens e mulheres para construir uma sociedade como a pensada por Rosa Luxemburgo: em que sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres.

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