Translation

sábado, 6 de fevereiro de 2016

Eliana Cavalcanti.Memória e cotidiano. Arte. Ballet. A arte de coreografar



    
                                                             
                                                                   

A arte de coreografar
 Eliana Cavalcanti 

            Coreografar é a arte de conceber e compor a sequência de movimentos, passos e gestos de um bailado a serem executados por uma ou mais pessoas, em uma cena, ou espetáculo. A arte da coreografia pode ser utilizada não só na dança, mas na ginástica, no nado sincronizado, na patinação no gelo, em desfiles etc
.
             A palavra coreografia vem do grego e significa escrita da dança. Segundo o crítico de dança, falecido em 1991, Antonio José Faro, o termo apareceu pela primeira vez, em 1777, no livro A arte da dança, da coreografia e de escrever danças, de Brunswick. O coreógrafo, portanto, é o indivíduo especialista em coreografia. Ele precisa ter muito talento e muita vivência na modalidade que pretende coreografar. Um bom bailarino, com toda a sua experiência, não necessariamente será um bom coreógrafo se lhe faltar talento para tal. Do mesmo modo, o talento sem a experiência poderá resultar num trabalho medíocre. O coreógrafo é um verdadeiro operário da arte e precisa ser estudioso, perspicaz, sensível e observador do mundo. O seu ofício é regido por uma espontaneidade intuitiva, aliada ao seu talento e à sua bagagem artística e cultural. São ideias que dialogam com a música, embora em casos raros sejam criadas coreografias sem música. 

           
Jiri Kyllianán
  A coreografia pode partir de um tema,
de um enredo, de uma música, de um poema, de um sonho... No meu caso, já tive várias pontos de partida. Mas, durante o processo criativo, o que me conduz a criar, efetivamente, é a música, com toda a sua riqueza melódica e construção dos seus compassos, tempos, tons e semitons. Ela desperta ideias adormecidas, frutos das informações que tenho guardadas na minha memória cognitiva, corporal e afetiva. Ela flui, então, espontaneamente. O racional fica mais por conta dos desenhos traçados no palco ou das formações elaboradas a partir dos corpos dos próprios bailarinos. Aqui, gosto de pensar e pensar para que o resultado seja harmonioso aos olhos do espectador.    
  
             Certa vez eu estava num tumultuado congestionamento de trânsito na avenida Fernandes Lima, quando percebi que no carro da frente o motorista me acenava pelo retrovisor. Não o reconheci de imediato, e fiquei com medo de responder ao aceno. Como o trânsito não fluía, ele resolveu descer. Deixou a porta do carro aberta, e me entregou um CD, dizendo: “Escute este CD. Aí tem uma música que vai dar uma ótima coreografia!”. Era uma música de Bach com arranjo de Yan Anderson. Assim que a ouvi, imaginei três mendigos brincando numa rua deserta. Levei o trabalho para um festival de dança do Mercosul, em Bento Gonçalves, e tiramos 2º lugar em coreografia, na categoria balé moderno avançado. O amigo que me deu o CD não era da área de dança, e sim um músico com uma sensibilidade especial.   


             O ideal seria que todo coreógrafo tivesse um pouco de conhecimento teórico sobre música. E foi com essa ideia que um dia, saindo de casa para me inscrever no vestibular de Psicologia, ao ouvir um som musical, vi que estava em frente ao Conservatório Pernambucano de Música. Desci do ônibus, e lá me matriculei, postergando o estudo universitário.  

             O primeiro momento da criação de uma coreografia é uma caixinha de surpresas tanto para o coreógrafo como para os bailarinos ou dançarinos, que devem estar abertos, receptivos. As criaturas são extremamente importantes para o criador. Devem ser matérias-primas de excelente qualidade para que se possa criar uma obra de arte através delas. Devem absorver a ideia inicial do coreógrafo, e nela colocar os seus valores artísticos e as suas personalidades, ou seja, devem ser intérpretes da obra. Maurice Béjart, uma dos maiores coreógrafos do século XX, diz em seu livro Um instante na vida do outro: “A cada dia sentia mais a necessidade de lidar com bailarinos que não fossem só bailarinos. Não suporto o bailarino-bailarino, o ‘bailarino-puro’: porque, como as experiências químicas, é artificial, só existe nas provetas. Sempre estive rodeado de personalidades. Quero que não se esqueçam do rosto dos meus bailarinos, seus olhos, seus sorrisos, suas tristezas”.

           
Maurice Béjart
 
   Já chorei várias vezes vendo belos trabalhos. Uma das vezes, foi assistindo, no Teatro Municipal de São Paulo, a um espetáculo do grande coreógrafo tcheco Jirí Kylián, de quem sou fã desde a década de 1980. A sua inventividade me reduziu a um grão de areia. Mas eu estava feliz por ter a oportunidade de ver, pessoalmente, a genialidade de um mestre na arte de coreografar. 

           Cada coreografia é uma nova descoberta, um desejo de dizer algo, de emocionar, de registrar ideias. E poderá, sem dúvida, ser o testemunho de uma época.

Nenhum comentário:

Postar um comentário