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domingo, 2 de novembro de 2014

Vera Valério. Os caminhos tortuosos da violência






Os caminhos tortuosos da violência


Vera Valério




Vera Valério formada em jornalismo pela Universidade Federal de Alagoas em 2001. Foi chefe de reportagem, editora-adjunta de Cidades e Editora de Cidades, do extinto O Jornal de 2005 a 2012. É produtora da TV Educativa de Alagoas desde 2005.  Em 2013 assumiu a função de editora-chefe do Programa Fique Alerta.


Dois dedos de prosa




A violência é um dado dominante dentro da constelação de problemas chamada Alagoas.  Está em todas as conversas, em todos os lugares, afeta classes sociais e segue sua faina cotidiana. Esta ênfase, segundo demonstra o Banco de Dados  do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Direito, Sociedade e Violência do Centro Universitário CESMAC  que acompanhou em 2012 e 2013 as matérias publicadas sobre o assunto pela imprensa diária de Maceió.


Alguns poucos jornalistas dedicam-se sistematicamente à escrita sobre violência, partindo de diversos pontos, defendendo posições diversas em uma pauta que parece vai ocupando cada vez mais o espaço dos jornais e matéria de pauta obrigatória pelas redações. Concordando ou não com o que enunciam, dizem, pregam e  argumentam estes jornalistas, é de se reconhecer um fato básico: tornam-se senhores de uma grande informação sobre o quadro que se desenha em Alagoas. E têm o que falar.


O texto que vamos apresentar,  é da editora de um dos mais importantes programas de nossa televisão e que faz a crônica da violência especialmente em Maceió. É sem dúvida importante ouvi-la e Campus agradece sua gentileza, sua disponibilidade de dialogar sobre o assunto, ajudando-nos a montar o painel que desejamos dar à sociedade alagoana sobre si mesma. Vera é membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Direito, Sociedade e Violência do Centro Universitário CESMAC.


Maceió, agosto de 2014

Luiz Sávio de Almeida





Os caminhos tortuosos da violência

Vera Valério


Nos últimos 20 anos a violência tem sido, paulatinamente, um dos indicadores negativos com o crescimento mais vertiginoso no nosso país.  E o Nordeste, sendo uma das regiões mais castigadas, ao longo de sua história de colonização, exploração e atraso, foi um terreno fértil para a proliferação dessa “doença social” que nos aflige. É claro, que sendo Alagoas, um dos estados mais pobres da federação, também colheríamos os frutos que outros plantaram e que nós ajudamos a plantar, explico em breve essa “parábola da colheita”.

Há cerca de um ano por conta da minha profissão, sou jornalista, tenho me deparado diariamente com relatos de vítimas de violência, ou tenho tido contato com casos e mais casos de violência, de toda natureza. Vejo cotidianamente a face mais cruel da violência, que é a exclusão social. Para mim, a grande matriarca de todas as outras formas de violência. Em quase todos os relatos a que tenho acesso, vindos geralmente das pessoas mais pobres, classes “D” e “E”,  a violência aparece como algo fisiológico. 


O mais preocupante é que cada vez mais cedo a violência vem sendo normalizada na periferia da capital e também no interior do Estado. Crianças de 11, 12 anos com fichas criminais extensas, semianalfabetas, mas letradas no crime. São massas de alta resiliência cooptadas na infância que têm os direitos negligenciados, desde o ventre da mãe ( que quase sempre também não teve nenhum dos direitos garantidos pela Constituição Federal preservados) que crescem à beira de esgotos, em casas de papelão e zinco e que aprendem desde muito cedo a distinguir, um revolver 38, de uma pistola ponto 40, mas que não sabem nem assinar seu próprio nome.

Seria simplista atribuir aos nossos péssimos índices na Educação a culpa por todas nossas mazelas. Se tudo isso fosse apenas culpa da nossa falta de escolaridade, os índices de violência teriam caído nos últimos dez anos. De acordo com dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), do Censo Demográfico de 2010 , Alagoas tem 22,5% da população com mais de 10 anos de idade analfabeta.
A taxa no Estado é quase 13% maior que a nacional (9,6%). Ainda que o resultado mostrado pela pesquisa realizada pelo IBGE  seja ruim, em 2000, a situação era muito pior. O índice registrado no penúltimo Censo chegava a 31,8%. Em 10 anos, o Estado conseguiu reduzir a taxa em pouco mais de 9%. Mas, e a violência caiu junto?

Pelos dados do Mapa da Violência 2013, com dados catalogados entre 2000 e 2010, Maceió está no topo da lista das capitais mais violentas do Brasil. Além da falta de educação de qualidade e em tempo integral para as crianças, adolescentes e jovens, outros fatores também  têm relevante contribuição nestes índices.



Um deles, a circulação de armas de fogo. É muito difícil saber o número exato, pois quem tem armas não as declara, mas estima-se que sejam 120 milhões de armas de fogo em circulação no país.   Segundo documento divulgado pela entidade Small Arms Survey  em julho de 2013, o Brasil ocupa a quarta posição no ranking de maiores exportadores de armamentos do mundo. De acordo com o relatório, em 2010, o país vendeu US$ 326 milhões (R$ 736 milhões) em armas e munições, ficando atrás apenas dos Estados Unidos (US$ 821 milhões, ou R$ 1,6 bilhão), da Alemanha (US$ 495 milhões, ou R$ 1 bilhão) e da Itália (US$ 473 milhões, ou R$ 950 milhões). Isto é o que sai do país, o que entra ilegalmente, por motivos óbvios, não é contabilizado.


A taxa do número de vítimas de arma de fogo em Maceió é quase dez vezes maior do que o considerado 'tolerável' pelas Organizações das Nações Unidas (ONU). De acordo com a ONU, o índice tolerável é de dez homicídios por 100 mil habitantes; em Maceió, a taxa é de 94,5 por 100 mil. Quanto ao número de vítimas de arma de fogo, Alagoas figura na terceira posição. Um salto de 17,5 (em 2000) para 55,3 (em 2010); o que representa um crescimento de 215,2%.

O investimento do Governo Federal, com o programa Brasil Mais Seguro, causou aparentemente uma retração no número de homicídios, isto de acordo com os dados do Mapa da Violência de 2014.  Eles mostram que apenas cinco Estados conseguiram reduzir suas taxas de homicídios. Dois deles — Rio de Janeiro e Espírito Santo — se mantiveram praticamente estáveis, com quedas de 0,3% e 0,4%, respectivamente. Os outros três foram Alagoas, com retração de 10,4%; Paraíba, com 6,2%, e Pernambuco, com 5,1%. Ainda assim Alagoas continua entre os dez estados com maiores taxas de homicídio do país.

A falta de escolaridade, a falta de oportunidade de emprego e renda, a livre circulação de armas e mais um ingrediente nessa receita explosiva: o tráfico de drogas.

São fenômenos  que separados não formariam um quadro tão grave. Há uma grande circulação e disponibilidade de armas de fogo no Brasil, isso é fato. Mas  nos Estados Unidos da América ( EUA) também há grande circulação de armas de fogo, mas o número de homicídios é três vezes menor do que o registrado no Brasil todos os anos. É fácil perceber que o determina essa liderança perniciosa na nossa sociedade  é a junção do primeiro fator, com uma cultura da violência, uma disposição para matar, diante de qualquer conflito; matar o adversário, o vizinho, o motorista do carro que te fecha no trânsito, a mulher que te trai, o funcionário que te rouba, o chefe que tem mais dinheiro que você...E nessa disposição para o crime, vamos perdendo vidas e nos envergonhando do futuro que estamos construindo.


Lá no início deste texto eu falava da “parábola da colheita”, herança que outros plantaram e que ajudamos a plantar. Uma das colheitas obrigatórias que fazemos nos dias de hoje é a péssima situação nos sistemas de educação pública e todos os seus reflexos. Esse esfacelamento não se deu da noite para dia. Foram décadas e décadas de descaso,  falta de investimento, desvios de recursos, resultando no que temos hoje. Sem o pilar primordial da educação nada se sustenta. Nenhuma mudança de realidade, cultura, forma de pensar, se dará sem o trabalho minucioso da educação.

Mas por que ajudamos a plantar? Por que não cobramos melhorias, não nos importamos com o nosso voto, não nos indignamos com nossa juventude sendo perdida diariamente para o crime. Achamos ainda que a morte é o melhor remédio para combater a criminalidade.

Dos vários especialistas em segurança pública que já ouvi, nenhum deles é a favor da pena de morte. Só levanta e empunha essa bandeira, na maioria das vezes, quem tem alguma pretensão de convencer massas, sejam pretensões eleitorais ou de audiência.  Sentença de morte é irreversível e erros judiciais ou de investigação acontecem com muito mais frequência do que é divulgado aqui em Alagoas, no Brasil e no Mundo. A Anistia Internacional calcula que, desde 1973, pelo menos 138 condenados à morte nos EUA acabaram sendo absolvidos antes que a pena capital ( pena de morte) fosse executada. Se tivessem morrido, não haveria, é óbvio,  reparação possível.

O argumento de que a pena de morte é eficaz na redução da criminalidade também é falacioso. Porque nos 36 estados americanos que adotam a pena, o índice de assassinatos por 100 mil habitantes é maior que o registrado nos outros 14 estados que não condenam à morte. Na França, especialistas em segurança pública garantem que a violência não explodiu depois que a guilhotina foi aposentada, em 1977. No Irã, o exemplo é inverso: a pena de morte foi reintroduzida em 1979, com a revolução islâmica, mas não significou nenhuma redução das taxas de criminalidade.


Uma pesquisa realizada em 2010 pelo instituto Gallup apontou que, apesar de todas as evidências contrárias à pena de morte, 64% da população dos EUA ainda a aprovam. Mas eles já foram muitos mais. 

"A pena de morte é a mais cruel, desumana e degradante forma de punição", declarou a imprensa americana Irene Khan, ex-secretária geral da Anistia Internacional. "Decapitação, eletrocussão, enforcamento, injeção letal, fuzilamento e apedrejamento não têm mais lugar no século 21."
Execuções em 2010

China - *
Irã - 252
Coreia do Norte - 60
Iêmen - 53
EUA - 46
Arábia Saudita - 27
Líbia - 18
Síria - 17
Bangladesh - 9
Somália - 8
Sudão - 6
Autoridade Palestina - 5
Egito - 4
Guiné Equatorial - 4
Taiwan - 4
Bielo-Rússia - 2
Japão - 2
Bahrein - 1
Botsuana - 1
Iraque - 1
Malásia - 1
*O governo chinês não informa, mas estima-se que o número tenha ultrapassado a soma de todos os outros 20 países que executaram penas de morte em 2010.
Fonte: Anistia Internacional

Apedrejamento, linchamento, sociedade doente e ensandecida 





Se pelo mundo governantes e autoridades veem que não há mais lugar no século XXI para este tipo de agressão e tortura, aqui no Brasil nos deparamos com o crescimento dos casos de linchamento. Baseados no discurso de que se a Justiça e a Polícia não agem  a comunidade tem que agir, as pessoas vêm aplicando o Justiciamento e o número de vítimas dessa histeria coletiva vem aumentando. Impossível não citar aqui o caso da dona de casa linchada por moradores do bairro Morrinhos, em Guarujá (litoral de São Paulo), confundida com uma suposta praticante de magia negra e executora de crianças, que foi brutalmente assassinada. Fabiane Maria de Jesus, de 33 anos,  morreu depois de brincar com um menino que ela não conhecia e oferecer uma fruta para ele. É o que sustentam os parentes da vítima, segundo relatos colhidos por eles com testemunhas do crime. Segundo os parentes e relatos da imprensa nacional, Fabiane teria visto uma criança sozinha na rua. Além de brincar com a criança, ela teria chegado a dar uma fruta para o menino _ Fabiane havia feito compras instantes antes. Mas a mãe da criança viu a cena, e achou que a desconhecida seria a tal bruxa que assombrava a região, boato que havia sido espalhado pelo perfil do Facebook chamado "Guarujá Alerta". E começaram a agredi-la por causa disso.

Aí se destaca mais uma vez a responsabilidade da imprensa nessa disseminação do terrorismo e da violência. Adjetivos como monstro, terror e outros tantos são usados para “desumanizar” os autores de crimes brutais ou não e justificar a “ira reparadora da sociedade”.

Aqui em Maceió, nos também já temos vítimas dessas práticas, um trabalhador foi confundido com um assaltante no inicio deste ano,  no Centro de Maceió, por que correu quando viu a polícia e a multidão gritando “pega ladrão”.  Foi espancado pela população, preso pela polícia e na delegacia, após ter a inocência comprovada foi liberado. Mas já tinha sido humilhado e essa marca ninguém vai conseguir apagar da memória dele.

É bem recente também a destruição da casa e do estabelecimento comercial de dois suspeitos de matar uma criança no Conjunto Cidade Sorriso, parte alta de Maceió. A população enfurecida, destruiu completamente os imóveis dos suspeitos, numa tentativa de mostrar a revolta e ódio pelos criminosos. Se esquecendo que na verdade prejudicavam também o trabalho da polícia. Pois, junto com a casa possíveis indícios ou provas também foram destruídos.

Uma sociedade justa e evoluída, como queremos ser,  não pune os autores de crimes brutais com os mesmo requintes de crueldade empregados por eles, isto seria voltar a idade média, visto ainda que o objetivo da pena não é a vingança, mas sim a responsabilização pelos atos cometidos.

É inegável que nosso sistema jurídico e nosso Código Penal, nos dão essa infeliz sensação de impunidade. Nossas cadeias, centro de recuperação juvenil e presídios não cumprem o papel a que se destinam. São verdadeiras universidades para o crime, com um intercâmbio mais eficiente dos já vistos pelo mundo. E também sabemos que muitos desses indivíduos não têm recuperação, muitas vezes por psicopatias graves e mantê-los isolados para sempre do convívio social seria sim  a única opção.
 Há luz no fim desse túnel?

Mas há pelo mundo bons exemplos de cidades e povos que conseguiram se livrar do estigma da violência? Como? Qual o caminho? Não me atreveria a apontar a fórmula mágica para acabar com a violência em Alagoas, por que em alguns momentos chego a temer o futuro e achar uma meta impossível. Mas se existem esses bons exemplos por que não tentar segui-los? Não simplesmente importando as experiências, por que esse caminho de resolução dos nossos problemas urbanos deve ser empírico, mas vale entender como se deu o caminho de redenção em alguns lugares do mundo.

Colômbia dá exemplo para reduzir violência. As cidades de Bogotá e Medellín se tornaram laboratórios sobre como prevenir e como combater à criminalidade.
 
Níveis de pobreza ainda são altos, mas essas cidades conseguiram reduzir suas taxas de homicídio em 79% e 90%, respectivamente . Medellín passou de capital da violência a laboratório da paz. Desde o início dos anos 90, homicídios caíram de 360 por 100 mil habitantes para 39. Governos nacional, estadual e municipal se uniram contra o narcotráfico, os paramilitares e as guerrilhas, entre elas Farc e ELN.

Aí vem o nosso maior desafio, por que nossos governos não conseguem essa união de forças para começar a mudar essa realidade? Será que a não está da hora da “politicagem”  dar lugar a projetos de Estado. Que devem ser mantidos com lisura e compromisso independente da legenda partidária que representem. A resolução do problema da violência, é sem dúvida, demorada, trabalhosa e já está atrasada. O que se espera para resolvê-lo? Acredito que depende de nossa ação individual e coletiva. Individual sendo mais criteriosos nas nossas escolhas, mais conscientes do nosso papel como integrantes da sociedade. Não são só, os nossos representantes políticos que vão resolver a doença da nossa sociedade. E coletiva quando pensamos como sociedade, o que queremos para os nossos filhos e netos? Que legado queremos deixar e que cidade, país eles vão ter que enfrentar?  Que cidadãos são esses que estamos preparando?  
 
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Que não há um consenso sobre o que causa a violência, e como reduzi-la não é novidade. Para um dos fundadores da Sociologia, Émile Durkheim (1978), "a violência é um subproduto social decorrente de falhas no processo de socialização das pessoas e da ineficiência das instituições sociais modernas". Para Marx (1971) ela seria resultante das lutas de classes.

Apesar de discordar do positivismo de Durkheim, uma das afirmações dele no que fala de políticas públicas voltadas às crianças, é uma lição de casa fácil de cumprir; "A consciência não contém ainda senão pequeno número de representações, capazes de lutar contra os que lhe são sugeridos; a vontade é ainda rudimentar. Por isso, é a criança facilmente sugestionável. [...] realmente, só uma cultura amplamente humana pode dar às sociedades modernas os cidadãos de que elas têm necessidade".
O tácito nessa questão da violência é que ela não pode ser tratada apenas como plataforma eleitoral. Pois assim, foi feito ao longo das décadas e como consequência disso chegamos a esse estado lamentável de verdadeira guerra civil. A responsabilidade pela criação da cultura de paz e de politicas consistentes é da sociedade e de seus representantes. Sem justiça social e sem reformas estruturais que mexam no sistema penitenciário e no modelo obsoleto de Polícia Civil e Militar, o caminho vai ser longo, sofrido e tortuoso.

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